A prevenção, o diagnóstico e o tratamento de hanseníase exigem ação em rede e trabalho holístico e colaborativo entre diversos profissionais de saúde que, em suas especialidades, se complementam e oferecem um conjunto de soluções em prol da saúde e bem-estar dos pacientes. Principalmente em razão das sequelas que a doença pode deixar, o trabalho dos terapeutas ocupacionais é primordial. Em parceria firmada entre o Instituto Aliança Contra Hanseníase e a Secretaria de Estado da Saúde do Mato Grosso, a AAL proporcionou ao governo do estado hiperendêmico uma consultoria técnica com a terapeuta ocupacional que é referência em hanseníase no Brasil. Conheça a trajetória de Susilene Nardi.
Como tudo começou
Há mais de 30 anos a Profa. Dra. e terapeuta ocupacional, Susilene Maria Tonelli Nardi, atua no combate, controle e prevenção da hanseníase. Atualmente é consultora do Ministério da Saúde e da Secretaria Estadual de Saúde e Grupo de Vigilância Epidemiológica, pesquisadora científica pelo Instituto Adolfo Lutz, em São José do Rio Preto, e pesquisadora convidada da FAMERP (Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto).
O tema hanseníase foi apresentado a Susilene por uma professora nos primeiros anos da faculdade. Ela ficou fascinada com as inúmeras possibilidades de atuação no enfrentamento da doença. Ao terminar a graduação, aquele fascínio ainda a acompanhava.
Ela seguiu para fazer residência e especialização no Instituto Lauro de Souza Lima, em Bauru, referência em hanseníase na América Latina, exatamente onde a sua professora, e agora amiga, trabalhava como terapeuta ocupacional.
Enquanto estava na especialização atendia em uma clínica particular onde aprofundou seus conhecimentos trabalhando ao lado de fisiatras, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais. Foram dois anos dedicados ao tema. “Deste então, nunca mais parei de atuar na área”, conta. E assim o fez.
Susilene passou por muitas instituições ao longo dos anos e através da Terapia Ocupacional (T.O) conheceu de perto a complexidade da doença, suas implicações físicas, sociais e o estigma gerado pela hanseníase.
Como T.O trabalhou atendendo pacientes nas áreas de ortopedia, traumatologia, reumatologia e neurologia, e foi responsável técnica e coordenadora de alguns programas de prevenção e reabilitação de hanseníase. Ministrou cursos e capacitou mais de cinco mil profissionais pelo Brasil.
Contra o estigma e a invisibilidade
“A hanseníase sempre foi uma doença negligenciada. O número de casos anual da hanseníase no Brasil é praticamente o mesmo que o número de casos de HIV. Em 2019, foram registrados 27.967 casos novos de hanseníase. Temos que nos questionar qual a razão na disparidade que se faz nos investimentos entre as doenças no Brasil”, afirma Susilene.
A disparidade é ainda maior quando comparada com outros países. O Brasil é o segundo país com o maior número de casos de hanseníase no mundo. As regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste são as áreas de maior incidência da doença.
Exatamente no Centro-Oeste, no estado do Mato Grosso (MT), que Susilene teve uma atuação importante como consultora técnica do projeto “Mato Grosso em Redes: Cuidado Integral em Hanseníase”, conduzido pela Secretaria Estadual de Saúde (SES-MT), do Governo do Mato Grosso, em parceria com o Instituto Alliance Against Leprosy (Aliança Contra a Hanseníase), a convite da Dra. Laila de Laguiche, presidente e fundadora da iniciativa.
A experiência de Susilene, e sua trajetória profissional no enfrentamento da doença, foram fundamentais para a elaboração das ações e estratégias desse projeto, como a adequação e otimização da sapataria móvel, fornecimento de prótese e órtese e meios auxiliares de locomoção.
Outras questões tratadas no projeto envolvem o fluxo de atendimento aos pacientes, procedimentos cirúrgicos e capacitação de profissionais. “É exatamente isso que este projeto irá desenhar, estruturar e descrever com detalhes, mas principalmente como ele será gerido e como funcionará dentro do estado do Mato Grosso envolvendo todas as instâncias”, explica.
Para Susilene é primordial estruturar como o diagnóstico precoce será realizado, desde os exames laboratoriais, passando pelas consultas multiprofissionais, reabilitação e cirurgias preventivas e ou reconstrutivas, passando pela educação em saúde e controle dos contatos intradomiciliares.
“O Mato Grosso, assim como a maioria dos estados do Brasil, carece de profissionais habilitados para realizar o diagnóstico precoce, em especial por ser uma doença na qual a clínica é soberana, haja vista que não existe um exame laboratorial padrão ouro para diagnosticar a doença. A rede de atendimento é frágil e o indivíduo, por vezes, percorre diversos especialistas para só então, após meses ou anos, ser diagnosticado”, reforça a consultora técnica.
A Terapia Ocupacional tem um papel relevante no processo de acompanhamento e tratamento durante a evolução da hanseníase, bem como a equipe de enfermagem, assistente social, psicólogo, fisioterapia e diversas especialidades médicas. Infelizmente há o risco de desenvolver deficiências físicas antes do diagnóstico da doença, durante o tratamento e em até 12 anos após alta.
O T.O atua em três frentes no tratamento da hanseníase: assistência, gestão e pesquisa. Juntas, elas possibilitam um tratamento mais eficaz e acabam formando uma rede de apoio aos familiares que vivem, ao lado do paciente, as sequelas da doença.
A terapia ocupacional pode oferecer apoio e acompanhamento na manutenção e melhora da condição emocional e integridade social, além de ressignificar o cotidiano dos pacientes que precisaram se afastar do trabalho ou de suas atividades rotineiras.
Diante das iniciativas de combate e prevenção à hanseníase um dos grandes desafios é o de recuperar a autoestima dos pacientes. Os que ficaram com marcas causadas pela hanseníase em seus corpos acabam se isolando e evitam contato com familiares e amigos, prejudicando convívio social. Muitas vezes, os pacientes ainda se deparam com o preconceito que ainda é uma realidade para quem teve ou enfrenta a doença.
Susilene analisa a questão sob duas perspectivas: a primeira como sendo algo extrínseco, ou seja, como o indivíduo é de fato tratado pelas pessoas por sua condição seja ela qual for; a segunda como intrínseco, que vem da própria pessoa, como ela acredita que os outros a enxergam e a reconhecem. A partir dessa suposição, que nem sempre é real, a pessoa adota um determinado comportamento.
“Na hanseníase não é diferente. O preconceito intrínseco e extrínseco ainda existe e atuam como fortes paradigmas da doença. Ao longo dos anos compreendo que os indivíduos que têm ou tiveram hanseníase passaram a ter mais voz e se empoderaram de sua condição. Tenho visto pessoas que têm ou tiveram hanseníase envolvidos em variadas causas sociais, em grupos de diferentes contextos, redes sociais e em conselhos municipais de saúde com vistas a garantir seus direitos, mas ainda temos um longo caminho a percorrer”, finaliza Susilene.